Em 1987, quando a Universidade Federal Fluminense lançou a primeira especialização na área de administração pública, o foco do curso era a abordagem do direito, ou seja, a legislação que regia o funcionamento de órgãos de prefeitura, governos e da União.
Um hiato de quase 20 anos se estabeleceu até que as instituições de ensino enxergassem a necessidade (e a demanda) de formação voltada para a boa gestão de recursos públicos, eficiência, inovação, transparência, ética e qualidade dos serviços.
Mas foi só a partir de 2020 que as especializações na área tiveram uma “explosão” de oferta em todo o Brasil e saltaram de 151 em 2019 para 717 este ano, de acordo com o Cadastro e-MEC. Ou seja, quase quadruplicaram.
Os dados se referem aos cursos que têm o termo “administração pública”, o que significa que há ainda mais opções quando se somam os cursos de “gestão pública”, “políticas públicas” e outros semelhantes.
O número de mestrados e doutorados também cresceu. De acordo com a Plataforma Sucupira, da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), eram quatro ativos em 2013 e passaram para oito em 2023, data da última atualização, também considerando somente o termo “administração pública”.

O salto reflete uma tendência de valorização da qualificação técnica dos gestores públicos diante de desafios crescentes. É o que defende a coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Administração Pública em Rede Nacional da Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Luciana Santa Rita.
Entre as principais razões que estimulam a formação especializada estão a necessidade de atuar com transparência e de prestar contas à sociedade, mas ela afirma que a expansão pode ser explicada por uma combinação de fatores.
“Em primeiro lugar, há um aumento na responsabilidade atribuída aos gestores públicos, que precisam tomar decisões mais técnicas e embasadas, diante de normas mais rígidas de transparência e prestação de contas. Ao mesmo tempo, a sociedade tem se mostrado mais exigente quanto à qualidade dos serviços públicos. Soma-se a isso, o esforço institucional por melhorar indicadores de desempenho e avaliação. Gestores bem preparados contribuem diretamente para a melhoria desses indicadores, ao implementar políticas mais eficazes, com base em evidências e boas práticas”, pontua.
Carentes de bons gestores, municípios investem mal o dinheiro público
Um dos responsáveis pela destinação errada de dinheiro público, a corrupção é medida em diversas pesquisas realizadas por instituições brasileiras. Já o desperdício por erros de gestão não é facilmente rastreável, porém dá para se ter uma ideia a partir de estudos como o “Panorama das obras públicas nos municípios brasileiros”.
Realizado pela Confederação Nacional de Municípios, o levantamento indica que existem quase 10 mil obras paradas no Brasil desde 2007, distribuídas em 3.132 municípios diferentes, ou seja, mais da metade das cidades brasileiras tem pelo menos uma obra parada. Elas correspondem a um valor corrigido de R$ 63,1 bilhões. A publicação é do ano passado.

A razão do abandono não é clara. O estudo aponta a necessidade de avaliação por parte dos Municípios, Estados e principalmente o Governo Federal, que subsidia boa parte das obras, e cobra mais planejamento e monitoramento.
Porém uma importante ferramenta desenvolvida pelo Conselho Federal de Administração (CFA) tem sugerido algumas causas, e entra elas estão a formação e a qualificação profissional.
O Índice de Governança Municipal (IGM-CFA) atribui nota aos municípios brasileiros a partir de três dimensões: finanças, gestão e desempenho, ou seja, como eles trabalham a gestão fiscal, como gastam em saúde e educação, quais são as práticas de administração e qual o impacto das políticas públicas para os cidadãos.
A reportagem pesquisou quais os 20 municípios mais bem avaliados e quais os 20 mais mal avaliados. Com os dados em mãos, comparou com o número de especializações em administração pública existentes no Brasil e identificou em que estados elas estão localizadas.
O resultado é que os estados onde ficam as cidades com melhores notas no IGM possuem 506 cursos de pós-graduação. Enquanto os estados com as cidades de menor desempenho possuem 123.
Em declaração durante um fórum de Gestão Pública em Alagoas, o presidente do CFA, Leonardo Macedo, cravou: o Brasil vive uma crise de gestão. Em outra entrevista, desta vez à agência CFA, ele afirmou que uma das lutas da profissão que tem resultados diretos na administração pública é inserir os profissionais formados nas instituições.
“Nós profissionais de administração temos as ferramentas necessárias para alavancar o crescimento da economia nacional. Entendo que a ciência da administração dará a contribuição necessária para o progresso do Brasil e com nosso capital humano e nossas riquezas bem administrados, o futuro é promissor”, defendeu.
A professora Luciana Santa Rita acrescenta que a busca pela qualificação profissional é um dever do gestor público, já que a atuação dele afeta diretamente a vida da população. A ampliação da disponibilidade de cursos de especialização, mestrado e doutorado é uma oportunidade de se atualizar que deve ser aproveitada pelos servidores públicos.
“A gestão pública não pode depender apenas de experiência empírica. Ela demanda compreensão das leis, domínio de ferramentas de planejamento, capacidade de análise de dados, visão estratégica e sensibilidade para lidar com as demandas sociais. Além disso, o gestor que se qualifica ganha credibilidade, amplia sua capacidade de inovar e de reduzir os riscos de falhas”, afirma.

Inovação e digitalização acelerada pós-covid aumentou demanda por conhecimento
O brasileiro viu os serviços governamentais ofertados pelo celular e pelo computador darem um salto de aprimoramento após a pandemia de covid. Com a necessidade de manter os atendimentos mesmo à distância, a inovação chegou com tudo no setor público e aumentou a necessidade de adaptação dos profissionais.
As novidades vão desde cuidados com uso de dados, digitalização de serviços, busca por soluções criativas para problemas complexos a novas modalidades de ensino, e exigem do gestor resposta qualificada, empática e inovadora.
Com objetivo de atender essa demanda, a Universidade Federal de Alagoas (Ufal), por exemplo, lançou no ano passado cursos de mestrado e especialização em Gestão de Políticas Públicas Educacionais e Transformação Digital.
A ideia inicial era atender necessidades do ensino médio no Brasil, e tinha como público-alvo professores dessa etapa da educação, como explica a coordenadora Luciana Santa Rita. Mas este ano a oferta foi ampliada para abranger todo o setor.
“Para além da gestão de dinheiro público, a formação já avança para ensinar servidores a melhorar o trabalho do dia a dia, por meio do conhecimento sobre planejamento e avaliação do que é feito, por exemplo, em sala de aula. Na Ufal, o mestrado também propõe aos alunos práticas para usar com eficiência as tecnologias disponíveis”, detalha Santa Rita.
Aluna da especialização da Ufal, a professora Grace Lis Porto ressalta que a gestão pública vive um momento decisivo, especialmente nas áreas de educação e cultura. Ela decidiu se especializar profissionalmente com o objetivo de contribuir com a criação de políticas públicas que integrem gestão eficiente, tecnologia e participação social, uma união capaz de gerar transformações concretas.
“Minha motivação vem da necessidade de compreender melhor como grandes programas nacionais são planejados, executados e avaliados, para que atendam de forma mais eficaz às demandas da sociedade. Tenho observado iniciativas que utilizam inovação digital para ampliar a formação de profissionais e isso reforçou meu desejo de aprofundar meu conhecimento e contribuir para políticas públicas mais eficientes e inclusivas. Acredito na capacidade de gerar impacto real na vida das pessoas”, expõe.
