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100 anos do GLOBO: a história do Zé Gotinha como maior símbolo nacional da vacinação

Não é exagero dizer que o Zé Gotinha é o símbolo da vacinação no Brasil. O personagem, criado há quase 40 anos pelo artista plástico Darlan Rosa para dar cara à campanha de vacinação contra a poliomielite, caiu nas graças da população brasileira e até hoje segue como parte importante das campanhas de imunização para diferentes tipos de doenças.
— É inegável a figura do Zé Gotinha como um dos maiores símbolos nacionais e que permanece até hoje como aquele que chama a atenção para a — afirma o ministro da Saúde, . — Embora tenha sido criado de forma lúdica para a campanha da paralisia infantil, mesmo com o fato de hoje a imensa maioria das vacinas ser de uso injetável, a figura do Zé Gotinha permanece com muita força de mobilização das crianças, de mobilização do público infantil, mas sobretudo das famílias como um todo, sobre a importância da vacinação. Ele é imagem da vacinação.
O que pouca gente sabe é que o célebre personagem poderia se chamar Vacinildo ou Defesinha. O Zé Gotinha foi criado em 1986, a pedido do . Na época, o Brasil enfrentava uma grave epidemia de pólio.
Já existiam os dias nacionais de vacinação. Mas a adesão era baixa porque as crianças tinham medo de tomar vacina e os adultos resistiam ao Programa Nacional de Imunizações (PNI).
Então, o país iniciou um plano de erradicação da doença e Rosa recebeu a missão de criar uma logomarca para marcar o compromisso do Brasil. Mas ele decidiu ir além da criação de um simples logo.
O desenho simples, sem mãos e pés bem delimitados foi proposital. Em um período em que o material impresso não era tão acessível, o personagem podia ser reproduzido não só pelos pequenos, como pelos profissionais de Saúde dos postos de forma manual.
“Fui chamado para criar algo que convidasse os pais a levarem seus filhos para tomar vacina. Desde o começo pensei que queria algo com um design mais simples, para que fosse facilmente reproduzido por todos e que tivesse as crianças como protagonistas deste processo”, conta Rosa em comunicado do órgão. “Minha visão de fazer algo direcionado para as crianças ficou ainda mais forte quando fui para o Nordeste e percebi que as crianças tentavam fugir da vacina, além dos pais acharem que seria o imunizante que levaria a doença aos filhos. Havia uma série de desinformação a respeito.”
O nome do personagem foi escolhido por meio de um concurso. Crianças de 3 a 12 anos de todo o país foram convocadas por uma propaganda para nomear o boneco. O resultado foi surpreendente, com mais de 11 milhões de cartas recebidas, e o grande ganhador foi o Zé Gotinha.
Embora tenha sido criado em 1986, o Zé Gotinha só estrelou sua primeira campanha de vacinação em 1988. Nestas quase quatro décadas de existência, o personagem e seu impacto na vacinação no Brasil também se fundem à história do GLOBO, que completa seu centenário em 29 de julho. Em 1989, o Zé Gotinha apareceu pela primeira vez no jornal.
Ele foi citado em uma matéria veiculada na edição do dia 11 de junho, que abordava o alcance da meta de vacinar 95% das crianças com idade entre zero e cinco anos contra a pólio no dia “D” de vacinação. No dia 8 de agosto do mesmo ano, ele apareceu novamente no jornal, em um cartaz, junto com a apresentadora, convidando as crianças a voltarem ao posto para tomar a segunda dose da vacina. Desde então, Zé Gotinha "apareceu" no jornal em pelo menos outras dez ocasiões.
Em 1994, seis anos após a estreia do Zé Gotinha na campanha, o Brasil recebeu o certificado de erradicação da pólio. Mas essa foi a segunda grande campanha de vacinação exitosa no país.
O sucesso da vacinação
A primeira foi contra a varíola. A campanha de vacinação contra a varíola é um marco não só no Brasil como no mundo, por alguns fatores. Para começar, a primeira vacina desenvolvida no mundo foi justamente contra a varíola, pelo médico Edward Jenner, em 1796.
Além disso, a varíola, doença que durante o século XX matou cerca de 300 milhões de pessoas, é a única enfermidade erradicada do mundo. Demonstrando o sucesso de uma campanha mundial de vacinação e o real impacto da vacinação em massa.
— As vacinações foram os maiores presentes que a humanidade já ganhou. Junto com a água potável e os antibióticos, revolucionaram a história das doenças infecciosas — avalia o infectologista Renato Kfouri, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).
O êxito da vacinação contra a varíola mostrou que a imunização em massa tinha o poder de mudar a história da humanidade. A cada ano, a vacinação é responsável por evitar entre dois e três milhões de mortes por doenças preveníveis, de acordo com a Organização Mundial de Saúde.
— As doenças infecciosas faziam vítimas muito precocemente. A tuberculose, a malária, a febre amarela, o sarampo e as meningites tinham uma alta carga na população mais jovem, especialmente nas crianças. Isso elevava as nossas taxas de mortalidade infantil, baixava a nossa expectativa de vida e depois do advento das vacinas, junto com os antibióticos e água potável, a gente aumentou em pelo menos 30 anos a expectativa de vida nos países que utilizam vacinas — diz Kfouri.
A criação do PNI
No Brasil, a história da vacinação sempre viveu de altos e baixos. A imunização contra a varíola, que levou à erradicação da doença, foi introduzida no país ainda no tempo imperial. Mas a compulsoriedade da medida motivou revoltas populares, como a famosa Revolta da Vacina, de 1904, no Rio de Janeiro.
Até que, aos poucos, a cultura da vacinação foi se instalando no país e o Brasil se tornou um dos maiores exemplos de vacinação em massa. Muito disso se deve à criação do Programa Nacional de Imunizações (PNI), que surgiu antes mesmo do Sistema Único de Saúde (SUS), em 1973.
O objetivo do programa, criado por determinação do Ministério da Saúde era coordenar as ações de imunizações no país. A estratégia foi um sucesso e possibilitou a erradicação de doenças como sarampo, pólio e a síndrome da rubéola congênita, além do controle de muitas outras enfermidades, como pneumonia, meningite pneumocócica, coqueluche, difteria, entre outras.
— A gente tem o antes do PNI e o depois do PNI — afirma Isabella Ballalai, diretora da SBIm. — Desde a década de 1970, a gente vivia surtos horríveis de doenças infecciosas. Todos, independente da classe econômica e social, morriam de doenças imunopreveníveis. Nos anos 90, o Ministério começa a fazer campanhas estratégicas para combater a rubéola, para eliminar o sarampo, a pólio. Os adultos de hoje não tiveram essas doenças porque foram vacinados.
Os especialistas são categóricos em dizer que o PNI é um dos melhores – se não o melhor – programa de imunizações do mundo.
— Nenhum outro país oferece tantas vacinas, de graça, para tanta gente — afirma Balallai.
Na década de 70, o PNI oferecia apenas quatro vacinas. Era elas: BCG (que protege contra as formas mais graves da tuberculose), sarampo, DTP (contra difteria, tétano e coqueluche) e a pólio oral (a famosa gotinha). Mais de 50 anos depois, o programa está muito mais robusto. Atualmente, o SUS disponibiliza gratuitamente 30 vacinas, incluindo 20 no calendário nacional de vacinação e as demais indicadas condições específicas.
Entre os fornecedores, o programa conta com dois laboratórios públicos, o Instituto Butantan, em São Paulo, e a Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro.
E o programa não para de evoluir. Se no início o foco era na vacinação infantil. Agora, todas as fases da vida são contempladas, com imunizantes para crianças, adolescentes, adultos, idosos, gestantes e pessoas com condições especiais.
— Nosso desafio é, na medida que vão surgindo novas vacinas, poder fazer análise de incorporação. Esse ano já incorporamos mais uma vacina, que é do vírus sincicial respiratório. Estamos preparando o planejamento da implementação dela, treinar as equipes, para o segundo semestre desse ano. O Ministério da Saúde também já solicitou a análise da incorporação da vacina do Herpes Zoster para o Sistema Único de Saúde. — afirma Padilha.
Até mesmo o Zé Gotinha entrou nessa evolução junto com o PNI. Em 2021, o personagem ganhou uma família para mostrar que o benefício das vacinas é para todos. Fazem parte dela a Dona Gotinha (avó), “Seu” Gotinha (avô), o Gotinha Jr. (filho) e a Maria Gotinha (esposa).
Combinado a outras estratégias de sucesso adotadas pelo projeto, o personagem contribuiu para o aumento das coberturas vacinais, que atingiram seu ápice entre os anos de 2000 e 2015, seguido de um período de retrocesso, com queda nas taxas de vacinação.
— A gente viveu o período de ouro das imunizações justamente quando a gente convivia com as doenças. A vacina tem esse grande desafio, ela faz tanto sucesso, elimina tantas doenças, que elas acabam sendo vítimas de si mesmas, porque elas eliminam as doenças, e a percepção de risco da população baixa. — avalia Kfouri.
Agora, a cobertura vacinal voltou a subir e o personagem segue firme e forte, mesmo após o fim do uso da "gotinha" na campanha.
— A figura do Zé Gotinha tem sido algo muito importante para divulgar a importância da vacinação. Não à toa, desde quando virei ministro, fiz questão de levar o Zé Gotinha para todos os clubes esportivos, no Campeonato Nacional Brasileiro de Futebol, para as igrejas. Levei o Zé Gotinha para a Assembleia de Deus, trato com igrejas católicas, com lideranças religiosas judaicas, muçulmanas, com religiões de matriz africana — diz Padilha.
Este ano, o Ministério da Saúde retomou uma ação considerada fundamental pelos especialistas para aumentar ainda mais as coberturas vacinais: a vacinação nas escolas. De acordo com o ministro, mais de 110 mil escolas aderiram ao programa Saúde da Escola.
Segundo Ballalai, vacinação nas escolas é considerada a melhor estratégia para combater a hesitação vacinal.
— Na prática, quando o ministério vai para a escola, ele consegue, sim, vacinar a grande maioria (das crianças). Países como Inglaterra e Austrália, não fazem vacinação no posto. Fazem tudo na escola — diz a médica, que também é membro do Departamento Científico de Saúde Escolar da Sociedade Pediatria do Rio de Janeiro.