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Jovem de sorriso fácil, que vivia intensamente: conheça a história de Juliana Marins, que morreu em vulcão na Indonésia
Pai, irmã e amigos descrevem a publicitária que morreu devido à queda na encosta do vulcão Rinjani

Aos 5 anos, Juliana Marins decidiu que queria andar de bicicleta. Nunca havia subido em uma, mas bastou ver a irmã, Mariana — que tinha o dobro de sua idade —, deslizando com leveza pelos pedais, para que tomasse coragem. Subiu na magrela como quem enfrenta um desafio inevitável e avisou que aprenderia sozinha. Na primeira tentativa, veio o tombo. Depois, com a doçura que lhe era característica, voltou-se para a irmã e pediu, num sussurro desarmado: “Me ensina?”.
'É inacreditável':
Após roubo e extorsão:
Juliana quase nunca estava só. Fotografias em suas redes sociais, além de relatos de amigos e da família, comprovam isso. Cresceu sob o teto dos pais, cercada de amigos, abraçada por afeto e vida. Por isso, é tão difícil para todos que a conheciam conciliar essa lembrança com a imagem que correu o mundo: sozinha, quase em posição fetal, equilibrando-se numa estreita fenda da encosta do vulcão Rinjani, na longínqua Indonésia.
— Juliana era muito levada, inquieta. Fui eu quem a ensinou a andar de bicicleta. Uma vez, ela colocou o pé bem na corrente da bicicleta enquanto estava sentada na garupa. Tivemos que correr com ela para o hospital — relembra Mariana, com voz pausada, como se estivesse vivenciando a doce recordação.
Mariana diz que as duas brincavam muito juntas — uma infância vivida longe das telas dos celulares.
Sumiços na infância
Brincalhona, de sorriso largo e contagiante, Juliana era dessas crianças que encantam e inquietam ao mesmo tempo. Adorava pregar peças na família. Num Dia das Mães, aos 6 anos, foi com o pai e a irmã a um shopping de Niterói, onde moravam, para escolher uma lembrança. Em meio à empolgação, desapareceu. Manoel Marins e Mariana passaram longos minutos aflitos, chamando seu nome pelos corredores. Só a encontraram muito tempo depois, escondida — satisfeita com a travessura. Resolveram, então, devolver a brincadeira na mesma moeda: passaram a vigiá-la de longe, em silêncio.
— Ela ficou apavorada. Quando nos aproximamos, meu pai a abraçou e pediu que nunca mais se escondesse da gente — conta Mariana.
Hoje, Mariana tenta se equilibrar entre a dor e a memória da irmã, enquanto comanda o perfil @resgatejulianamarins, criado para reunir esforços nas buscas por Juliana. Foi em meio a essa maratona emocional que conversou com O GLOBO, abrindo uma brecha no luto para contar quem era sua irmã. Até a noite de sexta-feira, a página já somava 1,7 milhão de seguidores. Desde a sexta-feira, 20 de junho, às 19h no horário do Rio — 6h de sábado na Indonésia —, a vida de Juliana passou a ficar por um triz. Aos 26 anos, a publicitária sofreu uma queda durante uma trilha no Monte Rinjani.
Dois dias depois, Mariana, com a ajuda de amigos, criou o perfil que mobilizou uma multidão. Mas o pior ainda estava por vir. Juliana sofreu mais duas quedas. A forte neblina que cobria a montanha a fez sumir. Quando reapareceu, já não se mexia mais. Peritos dizem que a morte foi causada por um trauma torácico grave decorrente da queda. No entanto, eles não precisam quando ela morreu. A família também questiona a lentidão no resgate e aponta “circunstâncias estranhas”: a mochila de Juliana foi encontrada na trilha e ela estava sem o casaco.
Manoel, de 64 anos, e Estela Marins, de 63, são de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. Vindos de famílias humildes, construíram suas vidas com esforço e estudo. Manoel formou-se em Odontologia; Estela, em Biologia. Juntos, trocaram a cidade onde se conheceram pelo Méier, no subúrbio do Rio — bairro onde as filhas passaram parte da infância. Ainda assim, Juliana fazia questão de dizer que era “cria de Niterói”, para onde se mudaram.
Ainda na Indonésia, enquanto lida com a burocracia do translado do corpo da filha, Manoel confessa que o luto ainda não teve tempo de chegar. A dor é abafada pela rotina exaustiva de reuniões, pela diferença de fuso horário, pela ausência que pesa mais a cada instante.
Juliana, segundo ele, sempre foi espirituosa, carinhosa, uma luz que iluminava a todos ao redor. O pai se lembra de um episódio marcante durante uma maratona que correu em Punta del Este, no Paraguai. A filha, já com mais de 18 anos, participou da prova em um percurso menor, de 10 quilômetros. Quando terminou, voltou com a mãe ao hotel, tomou banho e retornou, vestida com um saco de lixo improvisado como capa, devido à chuva intensa.
— Juliana voltou para correr comigo o trecho final, só para me incentivar. Dizia que eu conseguiria completar os 42 quilômetros. E consegui. Ela me agarrou pelo pescoço, me abraçou forte e me beijou — recorda Manoel.
Mesmo esgotado física e emocionalmente, Manoel não consegue parar de pensar na falta que a filha faz.
— Vou lembrar da Juliana como o anjo que Deus colocou na minha vida. Esse gosto por viagens ela herdou de mim e da mãe. Sempre viajávamos nas férias, conhecemos o Brasil de norte a sul. Desde pequenas, ensinamos nossas filhas a não dependerem de ninguém, a serem mulheres fortes. Não é fácil o que estamos vivendo. Vou sentir falta daquela vozinha dela me chamando: “Papi” — diz, com a voz embargada pela emoção.
A mãe de Juliana, a bióloga Estela, vive seu luto em silêncio, ainda em estado de choque. Entre elas, havia um ritual que agora ficará apenas na memória: assistir juntas ao programa Que História É Essa, Porchat?, apresentado pelo humorista Fábio Porchat. Um gesto simples, quase cotidiano, mas que carregava afeto — e que, agora, dói pela ausência.
Juliana cursou o ensino fundamental no Colégio Hélio Alonso, no Méier. Incomodada com o fato de o pai pagar uma escola particular, decidiu, por iniciativa própria, prestar o concurso para o tradicional Colégio Pedro II. Foi aprovada e fez o ensino médio na unidade de Niterói. Mais tarde, formou-se em Publicidade pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Mas foi no Pedro II que nasceram algumas das lembranças mais marcantes da juventude, segundo duas amigas inseparáveis daquela época. Juntas, Yngrid Vidal, Carolina Caziuk e Juliana formavam o trio conhecido como “Conexão”.
— Foi ela, com aquele sorriso escancarado, que se aproximou de mim, com aquela voz fininha, irritante e irresistível — brinca Yngrid. — A gente praticava esportes e, com o jeitinho dela, acabávamos nos metendo em outras aventuras: tecido acrobático, pole dance... Ela era muito corajosa. Em uma das nossas últimas conversas, falamos, com orgulho, das mulheres que nos tornamos — lembra.
Luta contra o racismo
A coragem de Juliana também é lembrada por Joaquim Lima, ex-namorado, fotógrafo e documentarista, que a conheceu nos tempos de UFRJ. Juntos, trabalharam no canal Off, voltado para esportes de aventura. Segundo ele, Juliana foi uma das primeiras produtoras negras da emissora.
— Juliana era realmente uma força da natureza. A cobrança sobre ela era sempre maior, por conta do racismo estrutural. Mesmo assim, ela não recuava. Criou um coletivo de pessoas negras dentro do canal e foi ponta de lança em um projeto social com pautas identitárias, conectadas aos esportes de ação — destaca Joaquim.
O grande sonho de Juliana era conhecer o mundo com um mochilão nas costas. Em 2018, chegou a trabalhar como voluntária no Egito, por meio de uma organização. Mas queria mais. Juntou dinheiro durante anos e, com o layoff da última empresa em que trabalhou, conseguiu enfim financiar a tão sonhada viagem pelo sudeste asiático.
— Levou todas as economias e passou a trabalhar em troca de hospedagem. Ficou quatro dias em um mosteiro budista, na Tailândia. Lá, ganhou um quarto simples e duas refeições diárias. Emagreceu bastante; comia pouco para economizar — conta Mariana, que se preocupava com a irmã por vê-la confiar demais, enxergar bondade em todos.
Mariana conta que, antes da viagem, ela e a irmã conversaram longamente sobre os riscos que uma mulher — especialmente uma mulher preta — enfrenta ao viajar sozinha.
— Fazer certas coisas sendo uma mulher preta é perigoso. Mas, se deixamos de fazer, também estamos nos privando de ocupar esses espaços com os nossos corpos. Se a gente não rompe essa barreira que nos impede de estar nesses lugares, como outras pessoas vão conseguir chegar lá? A decisão de viajar sozinha também era uma forma de ocupar espaços que raramente são ocupados por pessoas como nós — explica a irmã de Juliana.
Segundo Mariana, Juliana estava decidida a tomar todos os cuidados possíveis. Uma das suas armas secretas — que, segundo ela, já havia nascido com a irmã — era a capacidade de fazer amigos por onde passava. Conhecer pessoas era o jeito que Juliana encontrava de não se sentir sozinha.
Nas chamadas por vídeo que faziam, Mariana começou a notar algo diferente:
— Ela estava apreensiva com a ideia de passar quatro dias em silêncio no mosteiro, como determinava a regra dos monges. Mas, ao sair de lá, me disse: “Foi a melhor coisa que me aconteceu”. O próximo destino seria a Índia, onde ela daria aulas de ioga e buscaria uma certificação.
Na última conversa que tiveram, Yngrid perguntou quando Juliana voltaria. Ela respondeu com bom humor:
— Logo, porque meu dinheiro e meu óleo de argan estão acabando. Imagina, como vou sair nas fotos com o cabelo desarrumado?”