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Lei Magnitsky: juristas veem medida de Trump contra Moraes como 'excessiva' e 'interferência direta' ao Brasil
Especialistas ressaltam que a norma tem implicações que extrapolam as fronteiras dos Estados Unidos e traz consequências negativas até mesmo para o governo americano

O anúncio do governo americano sobre a aplicação da Lei Magnitsky contra o ministro do Supremo Tribunal Federal () foi avaliado como uma "medida excessiva" por juristas ouvidos pelo GLOBO. Os especialistas entendem que, apesar de os efeitos práticos contra o magistrado serem pequenos, o valor "simbólico" da imposição do presidente traz consequências negativas até mesmo para os interesses dos Estados Unidos.
A lei Magnitsky prevê uma série de sanções que, na prática, extrapolam as fronteiras dos Estados Unidos e que podem ser decretadas sem necessidade de condenação em processo judicial. A rigor, basta um ato administrativo do governo americano, que pode ou não ser lastreado em informes de autoridades e organismos internacionais.
A principal sanção prevista na lei é o bloqueio de bens de pessoas ou organizações que estejam nos Estados Unidos. Isso inclui desde contas bancárias e investimentos financeiros até imóveis, por exemplo. Os sancionados tampouco podem realizar operações que passem pelo sistema bancário dos Estados Unidos. Na prática, isso leva ao bloqueio de ativos dolarizados mesmo fora da jurisdição americana, bem como ao bloqueio de cartões de crédito internacionais de bandeiras com sede no país. A lei também inclui o banimento de entrada no país e a proibição de negociar com empresas e cidadãos americanos.
Especialista em direito internacional, o professor da FGV Evandro Carvalho afirma que a medida de Trump representa uma forma de intimidação ao STF, que também atua contra o “próprio interesse nacional dos Estados Unidos”. O pesquisador avalia que os efeitos práticos contra Moraes são “quase nulos”, mas a ação americana traz consigo um teor simbólico “muito perigoso”.
— Os EUA têm um histórico de adoção de leis com aplicação doméstica, mas com efeitos extraterritoriais. Com a medida anunciada, Trump utiliza a legislação contra o Judiciário brasileiro. Por mais que a big tech tenha ficado descontente com decisões tomadas por Moraes, não pode recorrer ao governo americano para interferir na decisão da Corte maior brasileira. O poder dos EUA não pode ser uma espécie de instância recursal — diz Carvalho.
Na avaliação do professor da FGV, Trump ignora a ocorrência de uma tentativa de golpe no Brasil ao utilizar uma suposta perseguição ao ex-presidente Jair Bolsonaro para justificar a medida.
— Bolsonaro não teve o direito de defesa impedido em nenhum momento. Ainda que tenha havido algum tipo de desvio ou excesso, já que o Judiciário não é perfeito, esses problemas têm que ser resolvidos dentro do Brasil. É inadmissível pedir uma intervenção de Trump e a aplicação dessa lei, nestes termos, contra uma democracia. Um país com o qual os EUA mantinham relações diplomáticas estáveis por décadas — afirma. — Me parece que Moraes não vai recuar e os efeitos colaterais para os EUA serão negativos.
Professor da Escola Paulista de Direito, Manuel Furriela avalia que a Lei Magnitsky “não é aplicável” no caso brasileiro, já que ela é “muito específica” para o combate à corrupção e ao desrespeito aos direitos humanos. Segundo o especialista na área internacional, há também interpretações estendidas em relação a crimes de lavagem de dinheiro, tráfico de drogas e terrorismo internacional.
— O Judiciário brasileiro é um poder independente e os juízes, dentro das prerrogativas deles, podem tomar decisões. Se as partes não concordarem, podem recorrer no Brasil e no exterior, se for o caso. Vejo a medida de Trump como uma interferência direta do governo americano nas questões internas do Brasil — diz Furriela.
O advogado aponta dois caminhos que podem ser adotados por Moraes caso deseje recorrer da medida americana:
— Cabe um recurso administrativo perante o Departamento de Ativos no Exterior, o Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros (Ofac), o órgão americano responsável pela área, para que reveja se a aplicação caberia ou não no contexto brasileiro. Moraes também pode procurar a Justiça americana, pedindo uma ordem judicial para impedir a lei — aponta Furriela.
Para Felipe Kirchner, professor da Escola de Direito da PUCRS, a medida imposta por Trump é “claramente excessiva”:
— Há uma relação bicentenária entre países que é violentada por cooptação política ideológica. Não me parece que existe um amparo técnico jurídico da lei para se aplicar contra Moraes — afirma Kirchner.
O que é a Lei Magnitsky?
Sancionada pelo então presidente americano Barack Obama em 2012, a lei foi criada originalmente com o objetivo de punir os responsáveis pelo assassinato do advogado e militante russo Sergei Magnitsky, opositor de Vladimir Putin, morto em uma prisão em Moscou em 2009. Em 2016, o escopo da norma foi ampliado para permitir que o governo dos Estados Unidos possa sancionar pessoas pelo mundo que tenham desrespeitado os direitos humanos ou que sejam acusadas de corrupção. Não é necessário, porém, que haja condenação oficial para que as sanções sejam aplicadas.
Há a possibilidade de suspensão de contas em redes sociais que tenham sede nos Estados Unidos, como o Google. Isso inclui o bloqueio de acesso a serviços como Gmail, Google Drive, YouTube e Google Pay, mesmo que utilizados no Brasil ou em outros países.
Empresas de tecnologia como Google, Meta, Amazon e Apple, que têm sede nos EUA, são legalmente obrigadas a monitorar e relatar quaisquer movimentações financeiras, digitais ou contratuais que envolvam indivíduos atingidos pelas restrições previstas na lei Magnitsky, sob pena de sanções próprias.
Além dos Estados Unidos, a União Europeia e o Reino Unido adotam leis similares à Magnitsky, com sanções correlatas.