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Samba Que Elas Querem grava álbum com homenagem a Jovelina Pérola Negra e participação de Leci Brandão
Com trajetória que firmou espaço para o protagonismo feminino, grupo selecionou repertório que mostra riqueza de ritmos, carrega bandeiras que defendem e funciona também nas rodas de ruas, em que 'o público do abuso não se cria'

O pé na porta foi dado lá em 2017, quando elas ocuparam as ruas para engrossar o coro de que lugar de mulher era onde ela quisesse — e o delas era no samba. Oito anos de estrada depois, as artistas do Samba Que Elas Querem sentem que não precisam mais ganhar no grito de “arreda homem que aí vem mulher”. Com o protagonismo feminino na cena do samba carioca garantido, espaços tradicionalmente masculinos preenchidos por elas e respeito conquistados graças à qualidade do trabalho que apresentam, estão seguras de sua força.
Ney Matogrosso e Zeca Pagodinho.
Toni Platão.
— Ganhamos reconhecimento independentemente de sermos mulheres. Não somos um grupo de mulher, somos sambistas, e essa separação não faz o menor sentido — diz Silvia Duffrayer, que forma a banda ao lado de Cecília Cruz, Mariana Solis, Giselle Sorriso, Thay Carvalho, Bárbara Guimarães, Maria Angélica Marino e Karina Neves. — Hoje, o aplauso vem porque tocamos bem, surpreendemos pela execução, arranjos, identidade, pela nossa verdade.
‘Levar consciência cidadã’
É com esse espírito que gravam o primeiro disco, “O samba que elas querem é assim”, previsto para setembro. São 12 faixas: 11 sambas inéditos e uma regravação. Se as brabas estão mais “relaxadas”, o sangue nos olhos agora é rumo a outras missões. Como o futuro é para quem lembrar, elas lançam luz direto na memória, exaltando as que vieram antes e abriram caminho para que hoje pudessem voar. É o caso de Leci Brandão e Jovelina Pérola Negra (1944-1998). Esta última ganhou música em sua homenagem no álbum. Composta por Silvia e Cecília, “Pérola negra passou por aqui” conta com a participação de ninguém menos do que Cassiana Pérola Negra, filha da sambista famosa pela voz rouca e forte:
— A parte que me chama atenção na letra é: “Não contei com a sorte, mas tenho meu santo forte” — conta Cassiana. — Jovelina nunca almejou sucesso, tudo aconteceu naturalmente. Por onde passo, percebo que minha mãe tem uma legião de fãs e admiradores.
Leci Brandão.
Guardiã do legado da família e do país.
É a própria Leci quem entra em campo para registrar com as meninas a nova versão de um clássico de sua autoria do disco “Dignidade” (1987), “Lá e cá” (com Zé Maurício, com quem fez também o sucesso “Isso é Fundo de Quintal”). Ela relembra a história da composição, cuja gravação original não está disponível nas plataformas:
— Fala sobre problemas da África do Sul. Hoje, em que não se vê tanto na música temas da vida real, preconceitos e dia a dia das comunidades, com exceção do hip-hop e do funk, é um alento ver mulheres do samba fazendo isso. Precisamos falar não só de amor e traições, mas das questões sociais. Arte é instrumento de luta. Não é só uma homenagem a mim, mas exemplo para artistas sobre usar a música para levar consciência cidadã.
Reverenciar antecessoras é “herança ancestral”, diz Leci:
— Aquela máxima: quem não sabe de onde veio nunca sabe para onde vai. Não imaginava que ouviria de tanto jovem que sou referência. A atitude de comunidade, de se juntar para fazer algo bonito, abrindo portas do mercado, da criatividade e da beleza, me comove. Quando a iniciativa envolve samba e mulheres, aí a gente transborda de felicidade. É significativo porque estamos construindo um mundo sem preconceito contra negros, LGBTs, indígenas, todas as maiorias chamadas de minorias só porque não estão no poder. Destaco a qualidade musical do Samba Que Elas Querem e a postura de ir adiante, mostrar que mulheres podem e devem ocupar esses espaços, soltar a voz, fazer batucada, tocar instrumentos de harmonia, percussão, compor. Isso é fazer arte com consciência.
Sem palestrinha
Silvia chama atenção para o fato de as mais velhas terem feito tudo isso sem ficar dando palestrinha:
— Jovelina não passou a vida inteira falando “eu sou mulher”. Era uma sambista, e isso naturaliza. Como fez Beth Carvalho, como faz Leci. Quero é falar sobre samba, mulher eu sempre fui. O.k., buscamos o reposicionamento do protagonismo que homens ocuparam e ocupam. Mas eles são nossos parceiros, não estamos competindo.
O que o disco faz é justamente misturar. Há composições de Marina Íris, Raul DiCaprio, Marcelinho Moreira, Márcio Alexandre e Deise do Banjo. Além de canções autorais. Tudo isso com produção musical de Vitor de Souza (cavaquinista de Jorge Aragão e responsável por discos de Renato da Rocinha, Samba da Volta e Vinny Santa Fé) e arranjos do mesmo Vitor e de Evandro Silva.
Deus é mulher.
Zélia Duncan.
— Pedimos música aos amigos e fomos formando um repertório que dialogasse com nosso propósito e sonoridade. A gente busca nossas referências e trabalha na pesquisa. Tem partido alto, ijexá, sambas mais melódico, romântico... São composições que levam nossas bandeiras. Falamos de amor, romance, término, amizade, ancestralidade, fé, subúrbio e das nossas lutas — diz Cecilia.
Sempre tendo um pensamento como norte: que as canções funcionassem também nas rodas de rua. As mesmas onde o grupo — que adotou as cores vermelho e branco em referência a Zé Pelintra, o malandro rueiro, popular nas religiões afro-brasileiras — segue impondo respeito e dando recados necessários.
— Não dá para relaxar por completo, é sempre bom uma colocação. Começamos num momento em que todo mundo estava ferido, e abrimos caminho para mulheres e LGBTs ficarem à vontade. Aqui o público do abuso não se cria, porque a gente tem voz firme para se colocar e não passa pano — encerra Silvia.